"PASSAMOS PELAS COISAS SEM AS VER"
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
© Eugénio de Andrade
*
I
Tão absortos, tão intelectivos!
Andamos milhas sem ver e reter
os fluidos externos, tão concentrados
na nossa vida e tão desacertados
do que podíamos ser observando!
"Passamos pelas coisas sem as ver."
II
Na verdade há um certo cansaço
quotidiano, tantos desvalidos,
Que nos deixa perplexos como nulos!
Então fechamo-nos mais nos casulos
tornando-nos quase irreconhecíveis,
"gastos, como animais envelhecidos."
III
Lá vamos tecendo o próprio viver,
com pezinhos de lã sempre podemos
tentar sobreviver à 'tempestade'!
Perante esta surreal sociabilidade
e movidos p'la voz de desconfiança,
"se alguém chama por nós não respondemos."
IV
Somos 'bichos do mato' ou 'flores de estufa'!
Não estranhamos porque endoidecemos
com o evidente caos, que invadiu
o habitat, surripiou, influiu
os sentidos de tal maneira que
"se alguém nos pede amor não estremecemos."
V
Pois, tornou-se viral certa distância
e ainda mais com tanta escassez de amor!
Tornámo-nos espiritualistas,
egocêntricos, frios, calculistas!
Acostumámo-nos a este viver
"como frutos de sombra sem sabor."
VI
Crentes de poder vir a desfrutar
dum Planeta são e desprovidos
de certos meios vamos encalhando
num suposto estar amealhando
tempo! Esquecidos, pouco a pouco
"vamos caindo ao chão, apodrecidos."
© Ró Mar | 2022/01/22