terça-feira, 28 de julho de 2020

"AH, UM SONETO…"



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COROA de SONETOS de RÓ MAR


"AH, UM SONETO…" de FERNANDO PESSOA
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"AH, UM SONETO…"


Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear…

No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu agora
Com almirante em vez de sensação?...

Álvaro de Campos | Fernando Pessoa

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"AH, UM SONETO…"


1

 "Meu coração é um almirante louco",
Que navegou por mares em movimento
 N' adversidade pré-destinada, com pouco
Contentamento num descontentamento!

Ah, minh' alma aventureira de que tampouco
Me orgulho de ter o leme em momento
D' olhar ousado à musa! Vento de louco,
Que faço neste fim de mundo sedento!?

Abalroado ao navio fundo,
Num mergulhar inusitado por um mar
Perplexo de desassossego que afundo!

Ah, tão só e sempre o mesmíssimo olhar,
Paredes siamesas com este mundo,
 "Que abandonou a profissão do mar!"

2

"Que abandonou a profissão do mar"
Pois, o próprio meio o aconselhou
A viver uma vida mais pacata! Lar
Que é moradia d' ânimos o exaltou!

Um olhar nobre, enorme vontade d' amar,
Ou melhor, de ser o mor amado ofuscou
As janelas que têm maior vista pró mar
E num minuto o movimento faiscou!

Ah, triste sina! Esta minha lente baça
Navegando o mar alto..., naufrago por pouco,
A memória colmata tempo de desgraça...

A quem amou por esse mar de tão pouco
Existencialismo, olhando toda a graça
"E que a vai relembrando pouco a pouco!"

3

 "E que a vai relembrando pouco a pouco"
Versando tão convincente quanto dor...
Distópico, fragmentado e quase louco,
O mesmíssimo causa fúria d' amor;

A paixão platónica... por tão pouco
 Sustentada, tanto que amou e a dor
Da natureza formosa que o tem louco,
Amor duma vida quase imperador!

 A persiana suspensa num torcicolo
Que m' adentra a espinha! Ah, falta-me o ar!
Então, ligo a ventoinha e descolo...

Imaginário qu' intruso... o descansar
De tudo o que oportuna meu consolo,
"Em casa a passear a passear…"

4

"Em casa a passear a passear…"
Deambulando p' las margens do meu rio
Humedeço o aparo em tinta azul-mar
Dum tempo que a vai amando a fio;

Fino traço de pele rosa do pomar,
Dum perfume único, de flor que crio
Nos rebentos da roseira; e têm olhar
Terno os seus botões, meu arrepio...

Ah, formosura vejo o tempo de amar
No presente! Como isto me deixa louco!?
E a letra fora da linha... a dealbar...

Deambular p'la folha branca num rebloco
De letras invisíveis, tais como o olhar
  "No movimento (eu mesmo me desloco"...)

5

 "No movimento (eu mesmo me desloco"
Nesta folha branca, só de o desenhar)
Sinto-me outro, quase novo e coloco
O lado enfadado no fundo do mar;

Mergulhado nas profundezas por um pouco
Não afogo! Há qu' aprender a nadar!
É crucial pra um Almirante, por pouco
Vi o céu do rés-do-chão a desmaiar...

Contudo, meu lado direito dos costados
Estava com disposição pra remar
E o vento propicio a floreados!

Ah, formosura tenho o dia para amar,
Vi as estrelas e os anjos espantados
("Nesta cadeira, só de o imaginar)"...

6

("Nesta cadeira, só de o imaginar)"
A minha memória galga o agrado
E invade espaço num novo despertar
Qu' alucina o dia; verve de amado...

Se nesta pré-destinada algo inspirar
Não olho pró outro lado que é o desolado;
Pode haver utopia mais nobre qu' amar!?
Só a real beleza que és, meu respirar...

A noite rompe estrelada no cinzento
E corro as persianas de madeiro oco
No movimento ente o firmamento...

Ah, o amor pedaço de vida sem troco!
Da sensação que ronda o momento,
 "O mar abandonado fica em foco";

7

"O mar abandonado fica em foco"
Num pranto que me deixa deveras cansado
Para sonhar... e neste espaço sufoco,
Que me valha aquele ancião ditado:

"Deitar cedo e cedo erguer..."! E desloco
A minha moleirinha num almofadado,
Que consola a vista do que tanto desfoco
No movimento à noite daquele passado!

Do escritório ao quatro, martelo
Dois passos no carcomido patamar
Pelas traças do tempo... e depois... zelo

O desassossego num repousante mar
E o clarão do velho do Restelo
 "Nos músculos cansados de parar";

8

 "Nos músculos cansados de parar"
Exercito a outra alma de trapezista,
Qualquer coisa que passe por este meu ar
Bucólico e dê a volta ao artista...

Ah, malabarista, isto é que é dançar!
Sacudir os demónios da minha vista
E alucinar num normal passear...
Folhetinista de uma tal revista!?

Realmente isto é só ilusão,
Pois é, já lá vai o tempo dos abraços
E do pé de dança aquentando o coração;

Agora tudo é diferente nos laços
Que unem o universo e a construção...
 "Há saudades nas pernas e nos braços";

9

 "Há saudades nas pernas e nos braços"
De outrora, passeando no Rossio
Da minha Lisboa, elixir dos nossos
Antepassados e eu tanto aprecio...

Ah, quantos os passos... sapato de meus passos
Da Praça da Figueira à do Comércio
(Terreiro de Paço) engraxado nos grassos
Da Av. da Liberdade ao Rossio...

Desci-a a olhar prá esquerda e direita
Como um parafuso que enrosca na hora,
Senti o Tejo em casa e desta feita

Continuava p'los verdes azul afora...
Caminhos de ferro e a rua estreita,
 "Há saudades no cérebro por fora."

10

"Há saudades no cérebro por fora."
A Estação do Rossio imponente
E à esquina o quiosque de outrora
Com o jornal do dia da cor que se sente...

Acelerava o passo p'la rua afora...
Ah, a sede daquelas gordas era premente!
E no Chiado sentava minha gente,
Na brasileira, o café de toda a hora;

E sempre saía um verso inédito,
Havia alma nos demais calorosos abraços
E distraidamente deixava mérito,

Que nem eu conhecia, coisas de pedaços
Meus! E agora só e o pretérito...
"Há grandes raivas feitas de cansaços."

11

"Há grandes raivas feitas de cansaços"
Que m' assoleiam a alma, quis o destino
Que assim fosse! E eu que nos tempos escassos
Fui senhor de colete e chapéu de tino;

Quanto infortúnio e má sorte em laços!
Ah, quão ingénuos os meus sentimentos
Num mar tão arauto! Vi os meus abraços
Meninos cresceram em mil tormentos...

O desassossego do desassossego
É meu, só meu! Vale a pena a paixão
Por ela ainda que não mereça apego!

Dediquei uma vida sem conclusão,
Num sentido... num sentido e fiquei cego,
"Mas — esta é boa! — era do coração"...

12

 "Mas — esta é boa! — era do coração"
Que eu falava..., da aldeia e da mocidade,
Onde passeio os dias da solidão,
Tem fonte fresca e toda a minha vaidade...

De olhos cor de mar, de bilha na mão
Lá vai ela ligeira, moça de idade,
P'las escadas que dão pró casarão,
Cautelosa e sem olhar a liberdade;

Confesso que corei e não era de hoje,
Calculo ser doença para toda a hora
E não canso de a olhar... e ela foge...

Entre dedos... Ah, Senhora da Boa-hora!
É do amor de outrora, não do de hoje
"Que eu falava... e onde diabo estou eu agora"!?

13

 "Que eu falava... e onde diabo estou eu agora"!?
Quiçá, confins do mar perto de naufragar!
Amanhece e eu impróprio para a hora,
Atrasei o relógio a cochilar...

Paredes siamesas, lembrei o qu' agora
Tenho na memória para passear...
Vem à tona o mar, um navegar afora
E a tinta permanente a salpicar...

 Vale a pena dar asas ao sonho,
O coração leme da embarcação,
  Há razão no que oponho... componho...

Contemplar minha viagem de paixão
Num poema de futuro mais risonho,
"Com almirante em vez de sensação?..."

14

 "Com almirante em vez de sensação?..."
E neste compasso tão descompassado
Movimento a pauta duma canção
Que me desloca do longínquo passado!

Ah, poetas, imortais da nação!
Como eu gostaria de escrever meu fado
Num poema são de letras e escanção,
Com cabeça, tronco e membros, com tudo...

Ah, se eu tivesse o meu amor menino!
Tudo era mais fácil para este mouco,
Que desafina as cordas do violino...

Neste fim de outono, inverno por pouco,
"Ah, um soneto...", é que era... era hino!
"Meu coração é um almirante louco".

 © Ró Mar | 2020/07/27

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COROA de SONETOS de RÓ MAR

"AH, UM SONETO…" de FERNANDO PESSOA

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