sábado, 13 de janeiro de 2018

O LIVRO CHARNECA EM FLOR




Flor Bela de Alma da Conceição Espanca


Florbela Espanca - Vila Viçosa, 8 de Dezembro de 1894 - Matosinhos, 8 de Dezembro de 1930

O Livro Charneca em Flor


Florbela Espanca escreveu o Livro Charneca em Flor numa fase conturbada de sua vida e última, pois, logo em seguida partiu, a 8 de dezembro de 1930 (pondo termo à vida), antes de ser publicada a obra.  
Entendo que a poetisa pretendia com este livro o reconhecimento literário, exprimindo um outro Eu lírico, diferente do de suas obras anteriores (Livro das Mágoas e Livro Sóror da Saudade), numa linguagem poética madura e estética literária - soneto, que lhe assegurasse o êxito desejado. Penso que a poetisa preveniu a sua memória na dolorosa estadia pelo mundo em plena consciência de algo inevitável, pois, para além de se retratar muito bem ao longo da obra, mostra uma outra faceta desconhecida do público a de uma "Charneca em Flor" - o Renascimento, que não seria por certo o estado de espírito real da época que vivia. O que me fascinou mais foi o fato da poetisa se conseguir desdobrar na perfeição entre o Eu presente e o Eu passado e criar um terceiro Eu lírico, em que auto retrata com uma extrema naturalidade e beleza transpondo à vida genuína e rejuvenescente, que abarcaria sua alma, excelsa poesia. Neste livro está expresso todo o sentimento e dedicação da poetisa, enaltecendo a vida, a pátria (Alentejo), o amor, com fina e cuidada escrita de uma beleza e leveza incomparável. 
Em suma, Florbela Espanca, viveu incessantemente em busca do amor - amor absoluto, o qual seria impossível nesta vida, o que transpõe para uma outra vida (vida plena) - amor eterno, deixando o nobre e único testemunho humano feminino compilado numa obra (Charneca em Flor). A qual teve grande aceitação e êxito por parte do público, o que levou ao reconhecimento, desejado pela poetisa, do mérito e a consagrou como grande figura feminina da Literatura Portuguesa do séc. XX.

Entre a riqueza de linguagem poética dos sonetos, contos entre outros de Florbela Espanca em que o amor tem o papel principal e a vida o tempo ilimitado, foi extremamente difícil selecionar um, pois, eu amo poesia, a temática e admiro a poetisa como pessoa e mulher que o foi.

Escolhi o Livro Charneca em Flor, uma vez que foi o último livro que a poetisa escreveu e referencio o poema que lhe dá o título, pois o mesmo aborda o contexto do livro. 

Charneca em Flor


Enche o meu peito, num encanto mago, 
O frêmito das coisas dolorosas... 
Sob as urzes queimadas nascem rosas... 
Nos meus olhos as lágrimas apago... 

Anseio! Asas abertas! O que trago 
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas 
Murmurar-me as palavras misteriosas 
Que perturbam meu ser como um afago! 

E nesta febre ansiosa que me invade, 
Dispo a minha mortalha, o meu burel, 
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade... 

Olhos a arder em êxtases de amor, 
Boca a saber a sol, a fruto, a mel: 
Sou a charneca rude a abrir em flor! 

Florbela Espanca, in Charneca em Flor

Interpretação poética do soneto "Charneca em Flor":


O soneto "Charneca em flor" é o poema mestre do Livro Charneca em Flor, pois, ele revela o tema abordado na obra de Florbela Espanca. 

Poema composto por quatorze (14) versos; quatro (4) estrofes: as duas primeiras quartetos (4 versos) e as duas seguintes tercetos (três versos). 

Fazendo a contagem das sílabas métricas do primeiro e último verso verifico que os versos são decassílabos (10 sílabas):

  1º verso: "En/ che o/ meu/ pei/to,/ num/ en/can/to/ mago,"

14º verso: "Sou/ a/ char/ne/ca/ ru/de a a/brir/ em/ flor!."

Estrutura habitual nos sonetos de Florbela e moldes que assentam na perfeição para elaboração de um soneto, tendo em conta a rítmica e métrica das sílabas, acentuando a sexta e a décima sílabas métricas de cada verso do poema.
  
O esquema rimático do poema "Charneca em Flor" é na primeira e na segunda estrofe de ABBA, na terceira estrofe de CDC e na quarta estrofe de de EDE.

A poetisa logo no início do poema "Charneca em Flor" dá a entender o desejo de passagem de vida, para uma vida plena" Enche o meu peito, /num encanto mago," fazendo alusão às mágoas do passado "O frêmito das coisas dolorosas..." reafirmando o ato decisivo que lhe trará a plenitude e o renascimento "Sob as urzes queimadas nascem rosas... " para o amor eterno. Convita que irá alcançar a vida sublime reafirma-o e dá a entender que esquecerá toda a dor que viveu" Nos meus olhos as lágrimas apago...". Ora, isso só poderá mesmo ser possível com a partida, Florbela tinha o pensamento no além, no divino, não tinha outra escolha para realizar os seus desejos.

Na segunda estrofe do poema, Florbela revela uma certa pressa em alcançar a outra vida (livre, de anjo), "que só Anseio! Asas abertas!". indica que irá para o céu e o quanto antes, pois, questiona a vida presente confrontando o Eu consciente com o Eu subconsciente "O que / trago Em mim?" que persistia incentivando à paz interior, o que ela rejeita, "Eu oiço bocas silenciosas / Murmurar-me as palavras misteriosas / Que perturbam meu ser como um afago!", demonstrando firmeza em partir. Há uma outra possível leitura, o querer ser reconhecida pela sua escrita. Nesta fase do poema a poetisa indica a intenção de mudar o rumo quer na escrita, quer na vida, numa perspetiva de juventude, paixão pela vida. Remetendo para o renascimento, fase que está prestes a alcançar, quer na escrita quer pela partida para outra vida.

Na terceira estrofe, primeiro verso, o terceiro Eu lírico de Florbela começa a ganhar forma para premiar o livro "E nesta febre ansiosa que me invade, / Dispo a minha mortalha, o meu burel," exprimindo a sua intenção fugaz de viver uma outra vida, escaldante, de amor intenso quer no sentido de vida quer no de escrita. Declarando um rompimento com o passado "E, já não sou, Amor, Sóror Saudade..." e apresentando um novo presente. 

Na quarta e última estrofe o seu estado de espírito exalta-se, num turbilhão de emoções, adivinhando a boa nova "Olhos a arder em êxtases de amor, / Boca a saber a sol, a fruto, a mel:". E é no último verso que gera "fruto" o terceiro Eu lírico, auto retrato que Florbela Espanca deseja. Revelando um presente promissor, em que a velha Flor parte e renasce uma nova Flor "Sou a charneca rude a abrir em flor!"

Sabendo que a poetisa partiu pouco depois de ter escrito o livro Charneca em Flor, em dia de aniversário e aos 36 anos de idade, subentendo que colmatou o sofrimento planeando a partida como uma digna ascensão aos céus, quer a nível psicológico enquanto alma, quer físico enquanto livro.
Mas, esse aspeto não é relevante, o que importa mesmo é estar atenta a toda a beleza que envolve o livro Charneca em Flor e que enaltece a vida e o amor.

Livro que foi publicado um mês após a morte de Florbela Espanca, teve o maior êxito  por parte do público, pois para além do estilo poético revelador - neorromantismo (movimento de expressão artística, literária de florescimento do romantismo numa época positivista), abordava temas, como vida, morte, amor, sedução, desejo, mágoa, tristeza, solidão, saudade, de todo o interesse para a época, em particular para as mulheres e  de uma extrema sensibilidade e valor humano, que engrandeceu a poesia portuguesa. Sucesso que originou o reconhecimento merecido da Poetisa Florbela Espanca como grande figura feminina da nossa literatura.

Bem haja. Saudações Poéticas

© Ró Mar

http://ro-mar-poesia.blogspot.pt